Outro capítulo começa a ser escrito

Nas oito décadas corridas a partir de 1914 e que emolduram a trajetória do Palmeiras, o mundo ficou de cabeça para baixo … ao me­nos se fosse visto por um paulistano daquele tempo. Europeus não guerreiam mais entre si; ao contrário, decidiram abolir as fronteiras nacionais, juntando-se na União Européia. As guerras são outras hoje, e sabe-se delas no momento em que estão acontecendo, pois al­gumas são até transmitidas pela televisão – e 91 % das residências de São Paulo têm re­ceptor na sala.

A cidade, em número de ha­bitantes, aumentou espantosas 30 vezes. (O milhão de pessoas que trafegam diariamente pela avenida Paulista – hoje centro financeiro e imagem-símbolo da cidade – representam três vezes e um pouco mais a população de 1914.) Esse povaréu espalha-se por dois mi­lhões de imóveis legais e por um número desconhecido, mas estimado em 1,7 milhão de irregulares, boa parte nas mais de 700 favelas. Dessas residências sai um monte de lixo diário de 14 toneladas. Pelos 9 mil qui­lômetros de ruas (contando só as asfaltadas) trafegam 4,5 milhões de veículos, entre esses 35 mil táxis e 9 mil ônibus – responsáveis to­dos por quatro milhões de infrações anuais, incluindo as 400 ocorrências diárias atendidas por policiais do trânsito. Os apressados voam. O piloto Edú Chaves ficaria abismado: sua façanha octogenária é repetida agora por dois milhões de pessoas ao ano -os passageiros da Ponte Aérea Rio e São Paulo, que faz o trajeto em um décimo do tempo original.

O ruído, evidentemente, é estonteante. Nas imediações do outrora elegante “Triângulo”, por exemplo, chega a 86 decibéis, quando o máximo admitido pela Organização Mundial de Saúde é 60. Só escapa dele quem está debaixo da terra, os três milhões de passa­geiros diários do metrô, um dos mais moder­nos do mundo. Sede de 33 mil indústrias e 55 mil estabelecimentos comerciais, 1.500 agên­cias bancárias, esta não é, definitivamente, uma cidade pacata. Até por isso deixou de ser o Eldorado para onde con­vergi a m todas as es­peranças dos migrantes: a taxa de migração é ne­gativa, informam os es­tatísticos – e em português isso significa que sai mais gente do que en­tra. Seriam essas cifras o mosaico aproximado do caos? Experimente ape­nas insinuar isso a um paulistano – cujo nome pode ser João, Giovanni, Hans, Juan, Hanna ou o sobrenome Tanaka – e ele vira “bicho”. Tal rea­ção espelha talvez o que São Paulo produziu de mais bonito na última dé­cada: redespertar em to­dos um profundo amor e orgulho por ela, com ou sem decibéis.

Para entender um pouco mais esse fenô­meno, olhe o Palácio das Indústrias, aquele mesmo onde se instalou a 1 ª Exposição de Automobilismo há 71 anos. Dali despacha o prefeito municipal. Ele é o engenheiro Paulo Maluf, árabe por descendência e da direita por convicção, sucessor de Luísa Erundina de Souza, ex-assistente social, sertaneja da Paraíba por nascimento e da esquerda por princípio … sucessora do ex-professor de giná­sio Jânio Quadros, matogrossense de tendên­cias variáveis (é o anti-Washington Luís, pois chegou à Presidência da República, saiu por­que quis e encerrou a carreira na Prefeitura paulistana).

Depois desse jogo das cadeiras, atente para os dois candidatos favoritos na campanha pela Presidência da República. Um é Luiz Inácio Lula da Silva, de Caetés, distrito de Garanhuns, Pernambuco; o outro, Fernando Henrique Cardoso, nascido no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. O primeiro, operário, aprendeu política na fábrica, no ABCD, onde emergiu como líder sindical; o segundo, sociólogo, ensinou política nas mais conceituadas escolas do mundo, uma delas a Universidade de São Paulo, também aniverariante – 60 anos – em 1994. Maluf. Erundina. Jânio. Lula, Fernando Henrique têm um forte laço: são paulistanos, ou pelo menos conside­rado assim por quem vive aqui. É um espelho da diversidade de tendências e origens que convivem na terra dos imigrantes e a fizeram grande.

A São Paulo de hoje perdeu aquele jeito envergonhado de admitir que é apenas a “terra do trabalho”. É um dos centros com maior oferta de diversões do mundo, sem falar nos restaurantes, ou nos eventos internacionais dos mais variados setores que sedia. Por ser uma metrópole, não teme ousar e serve de laboratório: o que der certo aqui pode ser repetido em outros cantos do país.

No esporte já uma dessas ousadias em curso. Mesmo antes da seleção trazer o tetra, o futebol que andara em baixa por longo tempo, estava renascendo aqui, onde celebrara o casamento com o marketing.

Quando começou o namoro, houve quem torcesse o nariz diante da associação esporte-publicidade. Tal ligação, no entanto, vem de longe, às vezes para anunciar produtos “indesejáveis”. Como aconteceu nas Olímpiadas de 1936, na Alemanha, as últimas realizadas antes da II Guerra. Naqueles jogos, Adolf Hitler queria provar sua “tese” da supremacia ariana (Não conseguiu, e só se irritou com as vitórias do atleta norte-americano Jessie Owens, um negro).

Palmeiras de 1993.
Palmeiras de 1993.

Quando abriu as portas do Parque Antárctica para a parceria, o patrocínio, a co-gestão, o Palmeiras começou a escrever uma nova história dentro de sua história e inaugurou uma nova etapa do futebol profissional, que é administrado profissionalmente, mas não friamente. Ou seja, sem desprezar a vibração da torcida, agora renovada, já que a juventude, embora com olhos para as demais modalidades, tenha descoberto as emoções do futebol.

A torcida entendeu isso….e retribuiu com entusiasmo e respeito que o time teve por ela, ao oferecer-lhe duas vezes o título do Paulistão, em 1993 e 1994, quando levou para a sede do Parque Antárctica o vigésimo troféu daquele campeonato.

Luigi Cervo, aquele diligente organizador que perdeu noites na cuidadosa elaboração do Statuto, ficaria orgulhoso de ver onde chegou a aventura que ele e seus companheiros engendraram naquela noite de fim de inverno, no Salão Alhambra.