Os amantes da ópera vão ao futebol

Da mesma Sarajevo da qual vemos atual­mente, ao vivo, pela TV, imagens extrema­mente cruéis de guerra, vinha uma notícia in­quietante há exatos 80 anos: fora assassinado ali o arquiduque Francisco Ferdinando, her­deiro do Império Austro-húngaro.

Numa Euro­pa conturbada, tal incidente foi o estopim para detonar em seguida a I Guerra Mundial, inicia­da por ataques da Alemanha contra a Rússia. Em São Paulo tais notícias ainda demoravam a chegar. Com 320 mil habitantes. a cidade tinha como prefeito Washington Luís Pereira de Souza, um político que chegaria à Presidência da República – e da qual sairia deposto – e era pacata, apesar de contar com cerca de 300 in­dústrias. Via algumas novidades, como umas pessoas de baixa estatura e olho puxado, o japoneses, que começaram a chegar ao país seis anos antes. Nada de estranhar. contudo, numa terra de imigrantes.

Pelas ruas, o bonde ia tornando-se comum, sem mais aquele ar de novidade causado pelo primeiro, quando começou a circular na aveni­da Paulista. O paulistano, afinal, tinha coisa mais moderna da qual se orgulhar. Pois naquele 1914 coube a um cidadão da terra, Edú Chaves, realizar proeza das mais eletrizantes ao fazer o primeiro vôo de avião de longa distância, fa­zendo o trajeto São Paulo-Rio em inacre­ditáveis, para a época, quatro horas e meia.

Diversões, havia poucas. Os mais ricos dis­punham de mais, é claro. Afinal. tinham, novi­nho em folha, o imponente Theatro Municipal, obra do arquiteto Ramos de Azevedo, que fora inaugurado em 1911, dando, como se dizia na época, a ópera “Hamlet”.

Theatro Municipal, 1914, São Paulo.
Theatro Municipal, 1914, São Paulo.

O curioso é que os imigrantes italianos, entre todo o grupos, ti­nham maior cultura musical, trazida da terra. Estavam sempre prontos a se emocionar com os recitais líricos em outro teatro, o São José, instalado em um casarão.

Pobres e remediados tinham a missa, os passeios domingueiros … e, pelo menos, o direito de admirar coisas boni­tas. Como as vitrines do Mappin Stores, na rua 15 de novembro. Inaugurado em 29 de novem­bro de 1913 (com anúncio ocupando toda a primeira página do jornal O Estado de S. Paulo), prometia “artigos finos para senhoras e crianças”. E era de espantar, parecia uma “loja de lojas”, pois fora subdividido em on­ze departamentos (servidos por 40 funcionários), coisa nunca vista. Marcas do progresso.

Um novo tipo de diversão entusiasmara naqueles tempos a enorme colônia italiana da cidade que se espalhara por bairros como o Hixiga, Barra Funda, Bom Retiro, Brás, Mooca – levando a eles um colorido que acabou sendo o tom da cidade inteira. Em 1913 a equipe do Pro-Vercelli (campeão ita­liano) e, em 1914, a do Torino fizeram 11 partidas de futebol em São Paulo. Quatro ho­mens, particularmente, ficaram encantados com as exibições. Não só por gostarem de esporte, mas por verem ali um espetáculo democrático, atraente para todos, que não excluiria os ricos mas seria acessível aos demais. Decidiram criar um clube que repre­sentasse a colônia italiana. Um deles, Luigi Cervo, funcionário da Casa Matarazzo, era o mais ativo. Tinha queda para o associativis­mo social, conforme contou ao historiador Walter Pellegrini: “( … ) Fazíamos parte da So­ciedade Recreativa e Dramática Bela Estrela, onde reuníamos as nossas famílias para even­tos lítero-musicais e também para as danças que naquela época eram consideradas como novo gênero de esporte”. Acompanhado por três companheiros (Vicenzo Ragognetti, Luigi EmmanuelJe Marzo e Ezequiel Simone) ele fez a primeira tentativa de criar uma equipe na Societá dei Canotieri (Sociedade de Canoeiros, pois se especializara no Remo, hoje Clube Espéria).

Não deu certo e os amigos perceberam que precisavam de aliados para o projeto. Ragog­netti, jornalista e o intelectual do grupo, escre­veu na Fanfulla, jornal da colônia, uma carta aberta aos patrícios, pedindo-lhes a adesão à iniciativa. A carta, publicada em 14 de agosto de 1914, não teve grande repercussão. Cinco dias depois seguiu-se a ela um comunicado, chamando os interessados na fundação de um clube de futebol que fossem naquela noite· ao Salão Alhambra, na rua Marechal Deodoro, 2. (Desaparecida com tal denominação com as sucessivas urbanizações da atual praça da Sé, que ladeava, essa rua estava em pleno ”Triân­gulo”, o centro elegante, comercial e político da cidade, compreendido entre as ruas Direita, São Bento e 15 de novembro.)

Compareceram à reunião 35 pessoas e, co­mo bons italianos, logo “fundaram” dois parti­dos: o que queria só um time de futebol e o de­fensor de um clube social. Luigi Cervo botou suas artes de organizador a funcionar e conci­liou os dois grupos. Saiu dali com a incumbên­cia de elaborar os estatutos, ajudado por Mar­zo. Na verdade o que saiu foi um Statuto, redi­gido em italiano, aprovado no dia 26 de agos­to, no mesmo Salão Alhambra. Estava fundado o Palestra Itália, um clube de italianos, para italianos, mas dedicado também a integrá-los aos ” … filhos do País e membros de outras na­cionalidades”.

Na primeira diretoria, eleita no dia 7 de outubro e presidida por Ezequiel Si­mone, há, de fato, um nome sonoramente brasileiro, Álvaro F. da Silva, ao lado de 12 so­brenomes italianos.

O objetivo do clube, segundo o estatuto, era de “cultivar os esportes em geral e desenvol­ver o futebol em particular”, mas aberto a “manifestações de caráter diverso”. Era a es­crita conciliatória de Cervo em plena forma. O lugar onde se desenvolveriam as primeiras ati­vidades citadas no estatuto seria o Parque An­tártica, sublocado a outro time, o Nacional, que o alugava da Companhia Antártica Paulis­ta. O curioso é que o primeiro jogo de futebol do clube, realizado em janeiro de 1915, foi fo­ra dali, em Sorocaba, contra o Savóia, de Vo­torantim. Auspiciosa estréia: 2 a O para o Pa­lestra, cujo distintivo, aliás, era uma vistosa cruz de Savóia, símbolo de uma das casas no­bres da Itália.

Os primeiros dez anos de vida do clube, centrados unicamente no futebol, não foram, porém, dos mais tranquilos para a colônia ita­liana. Muitos dos imigrantes foram chamados de volta a seu país, convocados para lutar na guerra contra a Alemanha. Um deles foi Au­gusto Vicari, segundo presidente do Palestra. Sucessor do brevíssimo Ezequiel Simone, que pediu demissão depois de dois meses no cargo, Vicari ficara apenas oito meses na presidência. No futebol, havia uma outra “guerrinha”. O Palestra podia jogar amistosos, mas não era aceito no campeonato oficial, o da Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA), cujo quadro estava completo, com seis participan­tes. Só em 1916, com a saída de um desses ti­mes, o Scotch Wanderers, formado por ingle­ses, o Palestra pôde entrar na disputa.

Em seguida, os italianos tinham uma boa no­ticia a comemorar, o fim da I Guerra, em 1918. Para os radicados no Brasil, no entanto, aquele ano foi de sofrimento e medo, com a terrível gripe espanhola, uma epidemia que só na cida­de de São Paulo matou oito mil pessoas. Os que ganhavam a vida trabalhando no campo tam­bém pressentiram dias ruins, pois presenciaram uma violenta geada que prejudicou a produção cafeeira do Brasil, àquela altura, fornecedor· de 60% de todo o café produzido no mundo.

Na virada da década, finalmente, os pales­trinos espantavam o baixo astral. O clube en­trou em 1920 com o titulo de vice-campeão do Campeonato Paulista da temporada anterior e, em seguida, compraria o Parque Antártica, ainda então alugado. De casa própria, inaugu­rou uma sucessão de conquistas, ao vencer o Campeonato Paulista daquele ano de 1920. (Nos primeiros dez anos de existência repetiria o feito em 26, 27, 32, 33 e 34.) Apesar dos su­cessos crescentes alcançados com o futebol, o clube não se deixou ficar só nessa modalidade. Fiel à parte dos estatutos onde prometia “culti­var os esportes em geral”, fez surgir, em 1923 a secção de basquetebol, que iniciaria suas ati­vidades efetivamente dois anos depois … e que traria outras alegrias ao crescente número de associados e simpatizantes.